Passeio Lisboa - 25/Jan/2009 - Baixa/Chiado








"Carta de Amor para daqui a 60 anos"

Esta é a minha CARTA. Ainda não sei muito bem sobre o que é que vou falar. Talvez vageuie por estas linhas e acabe por não dizer nada. Talvez diga TUDO. Mas se calhar tu já sabes TUDO o que eu tenho para te dizer. Então para quê estragar o que ambos sabemos com palavras que não dizem nada? Talvez porque eu queira que fique escrito TUDO o que já sabes e TUDO o que ainda não te disse. Para que daqui a 60 anos encontres um papel amarelo, roído pelas traças, escondido na tua mesa de cabeceira, por baixo do remédio para o reumatismo e atrás da caixa de lenços de papel e... simplesmente SORRIAS... Sorrias como fazes quando percebes TUDO aquilo que eu tenho para te dizer e não faço; sorrias como quando te beijo levemente nos lábios... O TEU SORRISO... Eu podia falar do teu sorriso... Mas um sorriso é algo mais do que palavras. Então de que é que eu posso falar que te faça SORRIR daqui a 60 anos? (...)
(...) Talvez puxando de um cantinho da tua memória turva e já senil de um velho cansado - mas feliz - de 80 anos, o dia em que nos conhecemos. Agora já sei que estás a SORRIR. Não preciso de te estar a ver para saber que estás a sorrir. E sei também que se te lembrares do que dissemos, vais SORRIR. E se eu te falar do nosso primeiro beijo, vais SORRIR. (...)
SORRI, quando pensares em TUDO o que descobrimos juntos, quando pensares em TUDO o que crescemos desde que nos conhecemos, em TUDO o que vivemos. Mas SORRI também quando pensares em tudo o que ficou por viver. SORRI SEMPRE. (...)
O TEU SORRISO... Tantas linhas e acabei por falar apenas do TEU SORRISO. E afinal, não disse nada. E tu ficaste aí a ler o que escrevi: TUDO o que já sabes e TUDO o que continuo sem te dizer. E SORRIS, porque sempre soubeste que eu nunca iria dizer mais do que já disse. Porque já não há mais para dizer quando SORRIS.
Acabaste de ler o papel amarelo e amarrotado pelo tempo, puseste-o dentro do envelope encardido e com cheiro a remédio para o reumatismo. Olhaste para a esquerda, mergulhaste nos lençóis e SORRISTE... E eu também SORRI...
Inês

"Memória das Coisas"


Também eu tive uma avó. Uma ávó que conheci e amei durante muitos anos e que deslumbrou a minha infância. Quando a via, eu próprio tinha a sensação de ter atravessado o espelho e penetrado num mundo de maravilha. Ou então, de ter aberto um livro de histórias, de doces e suaves ilustrações, e ver sair de entre as páginas aquela doce figura. (...)


(...) A vida é feita do dia-a-dia, que se vai tecendo, permanentemente, hoje. No entanto, o hoje deste momento, torna-se rapidamente no ontem de amanhã e vamos deixando para trás um tecido de vivências que faz parte daquilo que somos e que nos construiu interiormente. De vez em quando solta-se um fiozinho dessa trama e vem ao de cima a memória das coisas, por vezes íntimas e secretas, outras vezes colectivas e fazendo parte de um todo, dum grupo, duma época. A maneira como puxamos por essa ponta do fio é que poderá ser saudável e positiva ou saudosista e, como tal, negativa. Pode ser matar saudades ou alimentar saudades. Uma coisa é saborear o momento forte da lembrança (esse bocadinho de nós) sem nunca abandonar o sonho do futuro, e outra é ficarmos agarrados ao seu perfume, sorvendo todos os dias, de coração apertado, o cheiro da espiga de alfazema colhido num outro tempo.


(Silva Carriço, in "Memória das Coisas")