"Memória das Coisas"
Também eu tive uma avó. Uma ávó que conheci e amei durante muitos anos e que deslumbrou a minha infância. Quando a via, eu próprio tinha a sensação de ter atravessado o espelho e penetrado num mundo de maravilha. Ou então, de ter aberto um livro de histórias, de doces e suaves ilustrações, e ver sair de entre as páginas aquela doce figura. (...)
(...) A vida é feita do dia-a-dia, que se vai tecendo, permanentemente, hoje. No entanto, o hoje deste momento, torna-se rapidamente no ontem de amanhã e vamos deixando para trás um tecido de vivências que faz parte daquilo que somos e que nos construiu interiormente. De vez em quando solta-se um fiozinho dessa trama e vem ao de cima a memória das coisas, por vezes íntimas e secretas, outras vezes colectivas e fazendo parte de um todo, dum grupo, duma época. A maneira como puxamos por essa ponta do fio é que poderá ser saudável e positiva ou saudosista e, como tal, negativa. Pode ser matar saudades ou alimentar saudades. Uma coisa é saborear o momento forte da lembrança (esse bocadinho de nós) sem nunca abandonar o sonho do futuro, e outra é ficarmos agarrados ao seu perfume, sorvendo todos os dias, de coração apertado, o cheiro da espiga de alfazema colhido num outro tempo.
(Silva Carriço, in "Memória das Coisas")
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